quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Quando a Cinderela é a madrasta

Adoradas pelas crianças (meninas principalmente, mas, ei! os meninos gostam mais de princesas do que príncipes, certo?) e "odiadas" pelas feministas (e pelos feministas, porque não?), assim estão as princesas da Disney, neste território de sonhos povoados pela mente patriarcal.



Eu sinceramente considero um exagero olhar-se para a maior mina de ouro da Disney como um meio perigoso, capaz de provocar uma lavagem cerebral na mente das meninas e torná-las seres passivos e limitados a apreciar o cor-de-rosa.

As cores não têm sexo. O cor-de-rosa não tem nenhuma vagina. Ele é como um anjo. Não tem sexo e pronto. Assim como o azul não tem um membro fálico. Nem as coisas azuis da natureza são fálicas. Se as cores ganharam sexo, os médicos que lhe atribuíram tais instrumentos foram as pessoas, a sociedade. E, em tempos, o rosa, associado ao vermelho e, por conseguinte, à agressividade, era cor de menino e o azul, associado à Virgem Maria, era cor de menina.

As meninas não nascem a gostar de rosa. Elas são ensinadas a gostar de rosa (já dizia com tamanha verdade Simone de Beauvoir sobre o facto de não se nascer mulher mas tornar-se mulher). As professoras delas são os pais, os educadores e, porque não, as princesas da Disney. Por ser forçado a gostar de azul, eu não ia à bola com tal cor. Eu amava rosa, ou não é o fruto proibido o mais apetecido?

As princesas clássicas da Disney (Branca de Neve, Cinderela e Aurora, de Sleeping Beauty) são, muito seguramente, as jovens mais atacadas pelas feministas. São consideradas passivas, sonhadoras, esperando que o príncipe chegue e as resgate da situação desfavorável em que se encontram. Ok, se olharmos para as princesas que foram criadas quando a sociedade patriarcal estava mais fomentada que agora, a doce Branca de Neve é uma potencial ameaça.



É possível que as crianças sejam influenciadas pelas meigas princesas e aprendam a ser passivas, relegadas à casa, aos afazeres domésticos (tarefas que a Branca de Neve faz com agrado e que a Cinderela faz não sei bem porquê), apaixonadas pelo casamento e por um marido que as proteja.

Acontece que estas três jovens têm qualidades que, a meu ver, são tão capazes de influenciar uma criança como os seus "defeitos". A capacidade de trabalho, a bondade, a perseverança, a paciência são características apreciáveis e positivas. A Cinderela pode ser uma madrasta mas ela também é um icóne do trabalho. Ok, ela faz tarefas domésticas mas eu também não vejo o príncipe a fazer nada.

Se a bondade da Branca de Neve coloca-a num papel de ingénua absoluta que remete para a passividade, Cinderela é dotada de uma personalidade que a torna mais ativa (mais masculina, se se aplicar aqui a ideia convencional de que o ativo é masculino). Ela não é uma princesa fálica, mas faz duas coisas feministas: ela brinca para os seus amigos ratos em relação à aula de música das meias-irmãs e enfrenta-as sobre o facto de poder ir ao baile. Provavelmente a Branca de Neve choraria.




Repare-se que a atitude da Aurora sobre o facto de encarar de frente a sua obrigação como princesa e abdicar da sua relação amorosa com Filipe não tem de ser vista como fraquejo mas antes como um ato de mulher responsável e ciente das suas obrigações em prol de um caso de amor verdadeiro.




Ariel é a princesa mais complexa de todas quando se toca na ferida das princesas. Desde Aurora que uma princesa integrante da Disney Princess não era criada. Em 1989 surge o bem sucedido filme The little mermaid com uma princesa notoriamente diferente das três anteriores. E eu não estou a falar da cauda em prol das pernas. Ariel tem uma atitude bem mais ativa, masculina, que as princesas clássicas. Ela desafia o pai e é rebelde. Mas Ariel sofre, vivenciado uma vida amargurada, masoquista (logo passiva) como as sofridas Branca de Neve, Cinderela e Aurora.




Ariel está calada na sociedade patriarcal governada pelo príncipe Eric. A mulher não pode ter uma voz ativa na constituição da sociedade. E, claro, como já foi notado por alguém, a rebelde Ariel é, afinal, um ser indefeso que precisa do seu príncipe para a salvar, assim como aconteceu com as princesas anteriores.

É interessante reparar que, no decorrer da segunda vaga feminista, não foram feitos filmes de princesas pela Disney. É estranho pois a Disney poderia sentir que deveria divulgar à mulher o papel que ela deveria assumir na sociedade. Mas, talvez a Disney nem quisesse fazer por medo de ter de encarar críticas feministas. Ou nada disso.

Bela é a primeira princesa verdadeiramente fálica. Ela é bonita, sim. Mas ela é também inteligente. Não que as outras princesas sejam burras, mas Bela é claramente inteligente. Ela é capaz de purificar um monstro, o que não é para todos. Claro que a jovem sofre por amor e é escrava da criatura sinistra. Mas Bela não cede ao pedido do Monstro para ir jantar. Ela é uma reclusa autónoma e que, a pouco e pouco, transforma o monstro.




Jasmine é aventureira como Ariel e ajuda o seu amado a superar as adversidades. Mas, vamos lá. Ela é presa numa ampulheta e é o herói que a salva. E a ajuda de Jasmine não é moralmente correta. Quando a mulher ajuda, ajuda mal. Seduzir o herói de forma claramente carnal é reprovável aos olhos da sociedade patriarcal. As feministas criticam a exploração erótica da mulher no cinema (e não só) e Jasmine, quando assume um comportamento ativo (ajudar Aladdin), assume-se como um objeto erótico e, por isso, põe-se no papel passivo (segundo a tese de Laura Mulvey).




A par de Bela, Pocahontas é uma princesa fálica, não salvasse ela o seu amado assim como Bela. Mulan é obviamente a princesa mais fálica e possivelmente a mais amada pelas feministas. Ela é literalmente masculina.





A Disney tem vindo a centrar-se noutras formas de amor para além da típica princesa/príncipe como se verifica em Frozen e Brave e noutras etnias como em The princess and the frog. As princesas agora são emancipadas, rebeldes, proativas, terra à terra.





Estamos em tempos em que a mulher é mais uma trabalhadora Tiana que uma recatada e doméstica Branca de Neve. Porém, as princesas principais, aquelas que mais aparecem na linha Disney Princess são as incompreendidas clássicas. Porquê? Será que a Disney teme que as meninas sejam feministas ou, quando muito, ativas na função pública? Ou será que a Disney considera que as meninas gostam de ser docemente ingénuas, apagadas? Certamente é a segunda opção, se não a Disney não realizaria com toda a pompa e circunstância Frozen ou Mulan.


Por mais que os tempos mudem e a Disney inove, a cultura do feminino está ainda muito enraizada na sociedade, onde as meninas aprendem a seguir o "caminho correto", citando Freud, que é a feminilidade, ou seja, a passividade. As meninas querem identificar-se com a Cinderela e a Disney possibilita isso, não fosse tornar as princesas clássicas as comandantes da franquia. Assim, a Disney acaba por incutir a feminilidade tradicional nas meninas. Elas querem, a Disney dá. A Disney dá e elas aprendem a querer. É tudo um ciclo presente no patriarcado.

Vive-se um tempo de contradição como Peggy Orenstein reparou. As mulheres estão mais emancipadas e ativas no espaço público mas gostam das doces princesas.

Eu acredito que só as crianças apreciam primordialmente as brancas, loiras e glamorosas Cinderela e Aurora. As mais crescidas preferem as rebeldes. Ariel e Bela são normalmente as favoritas nas votações e listas presentes na internet. As raparigas da minha geração adoram Pocahontas, princesa cujo filme é hoje ignorado pela Disney. A Pocahontas, completamente feminizada na Disney Princess, com brincos de pena horríveis e maquilhagem, é poucas vezes capa dos produtos da franquia. Talvez as raparigas da minha geração adorem a índia por esta ter surgido na infância daquelas.




A Disney Princess tem princesas para todos os gostos, com qualidades e defeitos como os seres humanos, como as meninas que as procuram. Se a Branca de Neve as educa a serem submissas, também lhes pode ensinar valores como a hospitalidade e bondade. E eu não vejo raparigas a tornarem-se donas de casa, mas mais a estudar, a procurar o ensino superior. Também não vejo muita doçura nestes tempos. Talvez a Disney Princess em nada influencie as meninas. Então para quê preocupar-nos? E se influencia, que é o mais provável, não há problema. As princesas são mais princesas que madrastas.



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