segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Os gatos não têm Vertigens, uma obra-prima

Ultimamente tenho visto bastante cinema português: "Os Maias", "A Gaiola Dourada", "O Pátio das Cantigas" (original), "Aniki Bóbó" e "Os Gatos não têm Vertigens". É deste último que vou falar. Não dá para fazer uma crítica feroz porque esta obra-prima (e provavelmente será a obra maior de António-Pedro Vasconcelos, não porque eu considere que a partir de agora fará coisas más mas porque é difícil atingir o sublime de novo) é, de facto, maravilhosa. E isto não deveria ser uma opinião, mas, como eu disse, um facto.



Cinema é, acima de tudo, contar uma história através de imagens com o menor diálogo possível. Hitchcock fazia isto melhor que ninguém. Bom, "Os Gatos não têm Vertigens" não explora exatamente esta capacidade cinematográfica, mas vale por outras qualidades também muito importantes, tendo o ponto forte naquela que eu mais valorizo: o guião.




Este filme tem a capacidade de ter um argumento criativo, sem fugir ao registo comercial, que, para mim, é sempre uma mais valia. Na minha humilde opinião, o "comercial" não tem de significar vazio e fútil. Obras hoje reverenciadas como "Singing in the Rain" ou "Psycho" não são comerciais? São muito comerciais e, no entanto, dotadas de grande valor cinematográfico. Como português, considero urgente que um filme seja do estilo mainstream para levar pessoas até ao seu produto nacional.


Nota: Repare-se nas imagens abaixo. Tão interessante. Não creio que tenha sido a imagem de "Vertigo" uma inspiração para a imagem do filme de Vasconcelos, mas que é interessante a semelhança, é? Não que tenha algum mal fazer este exercício de intertextualidade, mas a coincidência é engraçada.





















A criatividade do argumento prende-se no facto de Vasconcelos explorar uma vertente pouco divulgada do amor. O realizador de "Call Girl" disse, em entrevista, que explora nos seus filmes várias facetas do amor e, de facto, em "Os Gatos não têm Vertigens", ele faz isso da forma mais inesperada possível.

o amor entre um adolescente (problemático) e uma mulher com alguma idade não é, a uma primeira vista, algo convencional, banal. Este amor não é um amor passional, carnal. É mais do tipo "mãe-filho" mas com uma pitada de camaradagem (ou melhor, é uma relação de camaradagem com um pouco de ternura própria da relação entre uma mãe e um filho). E mesmo assim, não se trata de um amor explorado grandemente pelos media.



Vasconcelos talvez tenha feito um dos filmes mais românticos, sem tratar do amor carnal, sexual.



Sonho desfeito

A primeira cena do filme é das melhores, prendendo o espectador ao ecrã. Quando Maria do Céu Guerra pára de dançar e vai beber água, o espectador sente que alguma coisa sinistra ou triste está para acontecer. 

O contraste entre a cara de cansaço e desespero de Guerra, ainda que subtil e o ambiente de ócio e despreocupação sofisticada que a rodeia causam uma estranheza inquietante. Guerra percorre o salão glamoroso, ofegante e cansada até junto de um balcão para refrescar a garganta. A mulher parece que vai sofrer um ataque, mas, na verdade, quem não aguentou o fôlego do baile foi a personagem de Nicolau Breyner que morre enquanto Guerra recupera energias. Uma surpresa para o espectador! O copo de água é um presságio do mal que se avizinha. É como se Guerra bebesse água para suportar melhor a morte que está à espreita no salão de baile.



Elsa Valentim, que dança com Breyner enquanto Guerra vai descansar, está vestida de lilás. Ora, o lilás é um roxo desmaiado ("desmaiado" vem mesmo a calhar) e, convencionalmente, o roxo está associado a sentimentos negativos (paixão de Cristo, tristeza). Elsa é o anjo da morte!




Repare-se que Guerra está vestida com uma echarpe ou xaile cor-de-rosa. Esta cor pode consistir numa brincadeira pelo nome da personagem de Guerra ser Rosa. Todavia, algo mais profundo pode advir da cor da echarpe. O cor-de-rosa é um vermelho esbatido, o que pode significar paixão tremida. Não que o amor, que é vermelho, entre Breyner e Guerra esteja enfraquecido mas, sim, que está para ser corrompido pela morte.





Vale referir que, na primeira cena, o uso de plano sequência confere à cena um cariz angustiante, ajudando a tornar perceptível ao espectador que aquela festa será interrompida por uma força obscura como acontece no conto de A Bela Adormecida.



Renascer das Cinzas

A porta da capela mortuária é verde, cor da esperança. Quem sabe, alguém não irá entrar na vida de Rosa para a alegrar? Ela bem precisa...



Os diálogos que Guerra e Breyner têm, depois da personagem deste ter morrido, são deliciosos e conseguem unir dois ingredientes à partida incompatíveis: melancolia e comédia. Faz lembrar o filme brasileiro "Dona Flor e os seus dois Maridos".



O comum seria Vasconcelos colocar um senhor charmoso e simpático na vida de Rosa para quebrar a solidão em que esta se encontra perante o seu estado de viúva. Ora, Vasconcelos foge à regra e inclui na vida da mulher um jovem, vagabundo com bom coração.


A cena em que os dois protagonistas, Maria do Céu Guerra e João Jesus, aparecem pela primeira vez juntos é engraçada visualmente. Um em cada mesa da esplanada, sem prestarem atenção um ao outro. Interessante como os dois não aparecem ao mesmo tempo. Surgem num mesmo plano, um plano sequência, mas não são apanhados em conjunto. Só depois da mala de Rosa ser roubada, os dois aparecem em conjunto num mesmo plano fixo, mas longe um do outro e ele de costas para ela.




Um Gato sem Vertigens

A vida de Jó, personagem de João Jesus, é triste e negra e as cores que o rodeiam reforçam visualmente essa ideia. Castanhos e cinzentos parecem ecoar no seu mundo felino, onde o rosa da sua camisola (talvez um sinal do seu amor não carnal por Rosa) é uma das poucas cores dotadas de um cariz alegre.



"De velho se volta a menino"


As cenas entre Guerra e Fernanda Serrano, que faz de sua filha, são tão reais que dói. Serrano é a típica filha preocupada com a saúde da mãe e que cuida dela, visto Guerra ser já idosa e, por isso, incapaz aos olhos da filha, seja do que for.

Serrano faz de boa filha mas é tão preocupada e austera que deixa a impressão de ser castradora, autoritária (e é, de facto, um pouco). As suas roupas sóbrias reforçam a sua personalidade.

A personagem de Serrano é uma figura maternal para com a sua mãe. Esta questão tem algo de divertido, mas é, acima de tudo, uma comédia muito amarga. É engraçado ver a filha preocupada com a mãe "rebelde", mas este tema é triste: a dependência dos idosos; o regressar à proteção. Rosa é Guerra e, de facto, Rosa é uma guerreira. Ela não irá para um lar.




Imitação de Vida

Vasconcelos parece brincar com muito gosto com os espelhos. Em duas cenas (na casa de banho e no quarto), é filmado o reflexo de Guerra e de Breyner, sendo que, ao contrário da atriz, a personagem masculina surge apenas no espelho. Talvez o espelho signifique "imitação de vida", uma irrealidade. A personagem de Breyner habita esse mundo porque já não é real, já não existe. Rosa tem de encarar a realidade de que o seu marido já não habita o mundo fora do espelho.



Vida

É preciso cuidarmos de alguém ou sentirmos-nos úteis para podermos dizer que vivemos. Caso contrário, apenas existimos (esta ideia e uma frase semelhante a esta estão presentes em "Madame X", um melodrama de 1966). Rosa, quando descobre o "gato" adolescente, sente-se útil e volta a ter vontade de viver (sai à rua e arranja coisas para fazer).



Nota: O filme é maravilhoso, mas há uma cena que me incomoda um bocadinho. O momento em que Rosa tem medo de ser apanhada por Jó e desmaia no seu apartamento é um pouco excessivo, quase caindo no campo da comédia por tão melodramático. Mas isto não atrapalha o filme, atenção. É uma parte mais franquinha, nada que deixe o espectador sem vontade de continuar a ver o filme.



O filho é um gato e o pai é um cão

As comparações que Vasconcelos faz entre as personagens e os animais é muito interessante. A vida de Jó é vivida num mundo cão, onde um gato tem poucas hipóteses de sobreviver. Vasconcelos não utiliza a expressão "cão" para caracterizar o pai de Jó como sinónimo de "melhor amigo". Neste filme, os gatos são melhores que os cães.








Jó é uma personagem real. É uma personagem tipo pois representa os chamados miúdos de rua. Mas não é excessivamente estereotipado. Vasconcelos mostra que Jó não tem culpa de ser assim e que, na verdade, o rapaz é mais um "coelho", assustado, perdido, manso se o deixarem ser.



Tejo

A cena em que Rosa atira as cinzas de Joaquim para o rio Tejo é muito divertida. Um realizador comum faria, muito provavelmente, uma cena dramática e emotiva. Vasconcelos faz uso da originalidade e torna-a uma comédia típica da Katherine Hepburn. No entanto, como este filme é essencialmente um drama, é preciso sensibilizar o espectador. Assim, surge a música melancólica acompanhando a imagem das cinzas perdidas nas águas do Tejo: o espectador, como que formatado, passa de divertido para triste.



Ciclo sem fim

No fim do filme, Guerra volta a vestir a roupa do início e parte para o outro mundo, onde encontra o seu amado marido. Um final reconfortante. Foi esposa, mãe, trabalhadora, de certa forma avó para com Jó e, agora, completa como se encontra, parte para outro baile, outra vida. Uma vida num salão de baile, não num lar. Jó vai seguir a sua vida, agora com uma namorada, longe do mundo cão, longe das vertigens. Já não corre perigo, já não tem de tê-las. Na verdade, ele é um gato. Ele nunca teve vertigens.


Em suma

"Os Gatos não têm Vertigens" é um grande filme. Um drama que não se torna demasiado pesado por ter momentos de humor inteligente. O guião é o trunfo do filme. Ainda assim, as interpretações de todos os atores e a fotografia estão excelentes. Lisboa está bela e charmosa. João Jesus mistura rebeldia e sensibilidade, tendo, provavelmente, o papel mais difícil do filme, e Maria do Céu Guerra está excelente mostrando a doçura, mas, por momentos, mostrando uma convincente faceta dura e destemida. Um filme português, bom e português, que faz refletir sobre o papel dos idosos e dos jovens "perdidos" que habitam Lisboa e todo o mundo. Um retrato verdadeiro misturado harmoniosamente com uma relação um pouco incomum (afinal, o cinema não pode mostra apenas a triste e dura Kansas, mas também o fantástico Oz). Sensível, divertido, dramático, envolvente, mas com um final feliz. Um doce para os cinéfilos e para o grande público. Recomendo.

Falas amadas

Posto aqui algumas das minhas falas preferidas presentes no filme:

“Eu pra ti sou como um emprego que tu detestas” 


“Agora eu já percebi porque é que ele ainda não conversou contigo... ele conversa melhor com o papel”




“Sabes o que é que tu és... és vintage”   






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